Parque fluvial em Portugal
Paulo Bidegain
Em geral, leis de recursos hídricos tratam rios e lagoas não como
ecossistemas aquáticos, mas como infraestrutura hídrica, ou seja, meros canais
que transportam água (rios) ou armazenam (lagoas e lagunas).
A realidade mostra que a gestão pública dos recursos hídricos vai muito
além de administrar demandas e disponibilidades de água e prover tratamento de
esgoto. Os instrumentos das leis de recursos hídricos são insuficientes para prover uma gestão sustentável da água.
Os fatos falam por si. Nas ultimas décadas, apenas as Lagunas de
Araruama e Rodrigo de Freitas estão em processo de recuperação, graças principalmente
às galerias de cintura (sistema de tempo seco) implantadas em seus perímetros, combinada
com outras ações. No caso da Lagoa de Araruama, ressalta-se a dragagem, o
ordenamento da pesca e a criação do Parque Estadual da Costa do Sol para
proteger trechos da margem em bom estado de conservação e com potencial
turístico para geração de emprego e renda. A recuperação da Lagoa de Araruama é
uma iniciativa internacionalmente premiada.
Os rios Guandu, Macacu, São João e Macaé, que figuram entre os
principais ecossistemas fluviais fluminenses junto com os rios Paraíba do Sul e
Itabapoana, encontram-se em péssimo estado, constituindo verdadeiras áreas
degradadas, ao lado das lagunas de Piratininga, Itaipu, Tijuca, Jacarepaguá e
Marapendi, todas ambientalmente colapsadas.
A macrodrenagem generalizada das
várzeas do rio Macacu fez com que o rio perdesse a capacidade de regularização.
Na estiagem, não há mais estoque de água nas áreas úmidas para abastecer lentamente
o rio. A água é toda levada para a baia de Guanabara. O rio
Macaé é vital para indústria petrolífera. Sem as águas deste rio adeus
royalties. Mas encontra-se completamente abandonado, assoreado e degradado
devido a canalização e retificação.
É fundamental priorizar a recuperação ambiental dos ecossistemas de
rios, lagoas e áreas úmidas (wetlands)
para assegurar os usos múltiplos. Somente ecossistemas aquáticos saudáveis
podem prover águas de qualidade para diversos fins e habitats em bom estado
para manter a biodiversidade nativa.
Neste cenário, o INEA e os Comitês de Bacia devem assegurar que o Fundo
Estadual de Recursos Hídricos (FUNDHI) financie estudos técnicos e a elaboração
de projetos conceituais e executivos para recuperação de rios, lagoas e áreas
úmidas. A restauração ambiental compreende tanto a margem quanto o corpo de
água.
Rio Guandu e ETA do Guandu
Parques de Orla para
proteção e uso das margens
Com respeito às margens de rios, lagoas, represas e áreas úmidas de
grande porte, é imprescindível transformá-las em parques públicos em forma de
faixa de largura variável, dotados de infraestrutura e mobiliário simples de
apoio ao turismo, recreação, pesca artesanal, esportes e ciclovias, além de
recuperar habitats de matas ribeirinhas, brejos, restingas e manguezais.
Parques semelhantes
ao Parque Ecológico do Tietê (São Paulo), aos parques fluviais de Curitiba (Barigui)
e aos parques do rio Hudson (Nova York), do rio Potomac (Washington, DC) e do
rio Rideau (Ottawa). E, no Rio de Janeiro, os Parques Naturais de Marapendi e da Barra da Tijuca.
Cabe mencionar que os terrenos de 15 metros de largura contados a partir
da cota das cheias ordinárias de rios e lagoas são públicos, pertencem ao
Estado. Parques materializam este domínio de forma muito mais eficiente do que
um mero decreto aprovando uma delimitação de Faixa Marginal de Proteção (FMP),
frequentemente abandonada, invadida ou transformada em depósito de lixo.
Por exemplo, parques ao longo do Guandu e do Macacu não só protegeriam
os rios mais importantes da região metropolitana como também impactariam de
forma significativa a vida de milhões de pessoas, ofertando um espaço público
de lazer de alta qualidade. E serviriam para valorizar socialmente os rios.
Os parques podem ser implantados e operados em regime de
Parcerias–Público-Privadas (PPP) ou concessão. O planejamento conceitual e executivo pode ser tarefa da equipe da Agência Executiva Metropolitana do Rio de
Janeiro em parceria com o INEA, financiados pelo FUNDHI, assegurada a ampla
participação das Prefeituras, população e comerciantes locais. Parques deste tipo não se
enquadram nas categorias da lei do SNUC. São na verdade parques urbanos com funções
múltiplas, inclusive de reter cheias eventuais e manter as casas afastadas dos
rios. Parques fluviais e lagunares devem ser considerados como instrumentos de
gerenciamento de recursos hídricos por razões óbvias.
Urge implantar um conjunto de parques municipais interligados entre si e
ao Parque Estadual da Costa do Sol, em toda orla da laguna de
Araruama, um dos principais destinos turísticos do estado (“piscinão natural”)
e o maior ecossistema hipersalino em estado permanente do mundo.
Em 2014, a Prefeitura de Niterói criou o Parque Natural de Niterói
(PARNIT) incorporando os terrenos da margem da laguna de Piratininga, tomou
empréstimo junto a CAF e esta desenvolvendo o projeto executivo para implantar
o setor orla lagunar do parque. Duas empresas lideres no ramo de soluções baseadas
na natureza e parques foram contratadas através de licitação, a brasileira
Embya e a francesa Phytorestore. Não será um parque urbanizado com exesso de concreto como o entorno da lagoa Rodrigo de Freitas. Mas uma área protegida que
valoriza os elementos naturais e tem menor custo operacional e de manutenção. O
projeto conta com participação do
Subcomitê das Lagunas de Piratininga e Itaipu desde a fase de concepção.
Ainda em Niterói, em 2008 o INEA ampliou o Parque Estadual da Serra da Tiririca (PESET) incorporando a planície de inundação da lagoa de Itaipu. Infelizmente, dez anos depois, quase nenhuma infraestrutura de apoio à
gestão e recreação foi implantada e sequer as terras públicas foram solicitadas
a Secretaria do Patrimônio da União. Vale ressaltar como aspecto positivo o
Centro de Esportes Náuticos implantado pela Associação de Windsurf de Niterói
com recursos próprios. A inação do INEA custou caro. Uma batalha se instalou envolvendo
empresas, INEA, Prefeitura, Câmara de Vereadores e a comunidade, esta liderada pelo movimento Lagoa para Sempre.
Parque Ecológico do Tietê
Recuperação de Canais
No Estado do Rio de Janeiro, todos os baixos cursos dos principais rios,
como o Guandú, o Macacu, o São João e o Macaé foram retificados. Os cursos
naturais, que antigamente corriam sinuosos com matas ribeirinhas e praias
fluviais nas margens, deixaram de existir, convertendo-se em grandes canais
retilíneos, uniformes, monótonos e com baixa diversidade biológica.
Na recuperação dos canais dos rios, uma alternativa que merece ser avaliada é o emprego da
engenharia de recuperação fluvial (river restoration), em franca
expansão na América do Norte, Europa e Austrália, com a finalidade de melhorar
gradativamente o rio, devolvendo-lhe a capacidade de prover usos múltiplos e
serviços ambientais. A prática de restauração de rios surgiu no final da década
de 1980, quando especialistas empreenderam as primeiras tentativas de
reabilitar a forma e função de córregos, com a finalidade de melhorar a
estabilidade, os habitats e as funções das planícies de inundação
A tecnologia rapidamente
se disseminou e muitos projetistas e empreiteiros estão continuamente
trabalhando na aplicação e adaptação de diversos métodos, além de desenvolver
novas técnicas, de modo a melhorar o desempenho dos projetos. As intervenções para melhoria do canal de um rio podem ser gradativamente planejadas e executadas por
estirões. A elaboração do projeto de recuperação exige o concurso de
especialista estrangeiro, pois o Brasil não dispõe de engenheiros e cientistas
treinados neste campo.
O papel do
especialista é prover assessoria técnica para formular o projeto, transferindo
o conhecimento e tecnologia para engenheiros e cientistas nacionais do campo da
engenharia de recursos hídricos e da geomorfologia e ecologia fluvial. Releva mencionar que o Corpo de Engenheiros do Exército dos
Estados Unidos é uma entidade líder na concepção e recuperação de rios, ao lado
do European Centre for River Restoration (ECRR), operado pela Comunidade
Européia.
É urgente a renaturalização dos canais dos rios Guandu, Macacu, São João
e Macaé. Milhões de pessoas e milhares de empresas dependem destes rios, todos
em estado ambiental deplorável, em especial no baixo curso.
Exemplos de vídeos de
iniciativas de recuperação de rios:
Indian
River
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Cumbrian
River
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Buffalo
River
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West Fork
Little River
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|
As seguintes medidas podem ser também implementadas:
1) Criar uma força-tarefa multidisciplinar no INEA e DRM, reunindo engenheiros,
geólogos, biólogos, economistas, arquitetos, geólogos, sociólogos, turismólogos e outras
profissões para modernizar o enfoque de gestão dos recursos hídricos e dos
ecossistemas aquáticos. Gestão da água não um campo exclusivo da engenharia;
2) Planos de bacia menos
enciclopédicos e mais objetivos, propondo projetos de criação de parques de orla,
recuperação de canais, implantação de sistemas de tempo seco ao redor de rios e
lagoas em áreas urbanas, redução de perdas e reuso da água, estimulo a captação
e uso de água da chuva e, em casos extremos, a dessalinização, além de meta de
consumo médio per capta a ser atingida através de programas de conscientização;
3) Amplo programa de
fomento a construção de pequenos açudes e cisternas no meio rural, a exemplo da região semiárida do Brasil;
4) Implantação de redes
em sistemas de drenagem urbana para retenção de lixo, desenvolvidas por
empresas nacionais, complementados por ecobarreiras nos canais dos rios;
5) Implantação de usinas de geração de energia a partir do lodo de estações de tratamento de esgoto e de
resíduos sólidos através de PPPs, cuja primeira usina do Brasil será implantada na região metropolitana de
Curitiba;
6) Aeração com micro ou
nano bolhas (tecnologias de aeração) ou uso de biotecnologia, ambos para recuperação de lagoas eutrofizadas ;
7) Treinamento de
engenheiros e funcionários públicos municipais em drenagem urbana sustentável,
para banir a pratica medieval e ineficiente de emparedar rios urbanos em
caixões de concreto;
8) Convênio do Governo do Estado do Rio de Janeiro (INEA, EMATER, AGENERSA e Agência Metropolitana) com a agência de águas do Estado de Queensland
(SEQWATER, ex-Queensland Water Commission), que conduz um dos melhores
programas de gerenciamento da água no plano internacional, superando uma crise de dez anos de estiagem;
9) Converter determinados
ecossistemas como Refúgios da Vida Silvestre, como por exemplo o wetland”
“Lagoa Feia do Itabapoana”, as lagoas de Jaconé e Imboassica e o trecho do rio
Macaé que se estende entre a localidade de Cachoeiro do Macaé, próxima a
Estrada Serra-Mar, até a Ponte do Baião, na Estrada RJ-162. Com 23,5 km, o
trecho mantém o curso natural, com praias fluviais, meandros e boa qualidade da
água, ideal para recreação;
10) Criar as APAs das
Lagoas Feia e de Cima e da Laguna de Maricá compreendendo as margens e os
corpos de água, gerenciando-as em parceria com as Prefeituras;
11) Organizar na UERJ o
Instituto dos Rios e Lagunas Fluminenses, de caráter multidisciplinar, a semelhança
do Instituto dos Rios Australianos ou do Instituto dos Rios Canadenses, para
conduzir pesquisas e treinamentos práticos, incluindo como clientes os funcionários de
carreira do INEA, do DRM e da EMATER, bem como das concessionárias de saneamento e das
Prefeituras.
12) Reforçar a segurança das barragens. Para
lembrar. Em 2003, o rompimento de uma barragem da Indústria Cataguases de
Papel, na cidade de Cataguases, localizada na Zona da Mata de Minas Gerais, lançou
900 mil metros cúbicos de resíduos industriais nos rios Pomba e Paraíba do Sul.
O despejo gerou mortandade de peixes e a interrupção do abastecimento de água
em vários municípios dos estados de Minas Gerais e do Rio de Janeiro por cerca
de dez dias. O Ibama aplicou uma multa de R$ 50 milhões. A empresa recorreu a Justiça
e, passados “apenas” 16 anos, aparentemente nada foi julgado.
Final
A ciência e a tecnologia oferecem um amplo espectro de soluções modernas
para enfrentar os desafios de gestão da água e de ecossistemas aquáticos no
Estado do Rio de Janeiro.
É preciso por fim nas discussões intermináveis, em
planos de bacia enciclopédicos e partir para ação, como fazem o Consórcio
Lagos-São João e o Comitê da Bacia do Rio Guandu.
Uma medida simples e fundamental é designar funcionários concursados nas
Superintendências do INEA como “gerentes de ecossistemas aquáticos”, um tipo de
sindico ou maestro para os principais rios e lagoas. Começando pelo gerente da
Lagoa Feia, gerente do Rio Macacu, gerente do rio Guandu, gerente do rio São João, gerente do rio Macaé, gerente da lagoa de Maricá, gerente da lagoa
de Saquarema-Jaconé e gerente da lagoa de Araruama.
No modelo tradicional que vem
desde 1975, dezenas de funcionários respondem por uma determinada lagoa ou rio,
entrando e saindo do processo de acordo com as circunstâncias. Como se fosse um supermercado sem gerente. Um é responsável pelo setor
de peixes, outro pelo setor de água, outro pelo setor de sedimento, outro pelo controle
de atividades poluidores e assim por diante.
Como diz o ditado popular, “cachorro
que tem dois donos morre de fome”. Jamais dará certo.