Órgãos
obsoletos de engenharia de urbanização e de obras públicas estão dizimando os
rios e córregos que correm nas cidades brasileiras
Paulo Bidegain
Em artigo recente, os engenheiros indianos
Nivedita Gogate e Pratap Rawal realizaram uma análise global das tecnologias e obras
de drenagem urbana (Sustainable Stormwater
Management in Developing and Developed Countries: a Review. Proc. of Int. Conf.
on Advances in Design and Construction of Structures, 2012). Segundo eles, tradicionalmente
a água da chuva (runoff) é considerada
um tipo de água indesejável em áreas urbanas, necessitando ser desviada o mais
rápido possível através de canais retos
e concretados. Ao contrário do conceito antigo que considerava as águas pluviais
como limpas, na verdade elas carregam uma série de contaminantes.
Gogate e Rawal citam ainda que na década de
1960, o único imperativo que guiava o planejamento e implantação de obras de
drenagem urbana era a quantidade, com o objetivo de minimizar cheias. Nas décadas
subsequentes o objetivo do manejo das águas de chuvas diversificou-se para
incluir a qualidade, a saúde dos ecossistemas, reuso e integração com o planejamento
urbano, além do componente quantitativo. O novo enfoque da engenharia de gestão
de águas urbanas passou então a minimizar a impermeabilização e maximizar a infiltração,
sendo conhecido como LID (EUA), WSUD (Austrália) e SUD (Inglaterra). Estas
técnicas, quando implementadas na escala de bacia hidrográfica acopladas ao
planejamento urbano, podem ser a solução sustentável para a gestão das águas
pluviais.
Em que pese o avanço tecnológico neste
campo na escala mundial, no Brasil este é um ramo estagnado da engenharia. Nossa
engenharia, em diversos campos, é uma das mais avançadas no plano
internacional, à exceção de uma, a engenharia de drenagem urbana, que chamarei
de EDU daqui para frente.
A EDU brasileira pratica o que há de mais
obsoleto, caro e apalermado no planeta, aplicando os mesmos enfoques, fórmulas
e obras que os engenheiros desenvolveram no século XIX, sem qualquer avanço. A EDU
move-se com base no lema que “rio bom é rio morto”, confinando-os em caixões de
concreto. As obras transformam rios e córregos em galerias de águas pluviais ou
valas concretadas a céu aberto e, no cúmulo do absurdo, às vezes cobertas com
lajes, convertendo-as em túneis cujo ar acumula gases advindos da putrefação
das águas lotadas de matéria orgânica.
Valão de Icaraí, antigo
Rio Icaraí (Niterói, RJ)
Em geral, bacias hidrográficas urbanas
apresentam uma parte de suas terras com superfícies completamente
impermeabilizadas por ruas, calçadas e telhados, causando sérias alterações no
escoamento, conforme ilustra a figura abaixo, produzida pela EPA.
A figura mostra que, em áreas urbanas, em
média 55% das águas das chuvas escoam para o sistema de drenagem e apenas 15%
infiltram. No ambiente natural 10% das águas escoam para rios e córregos, 50% infiltram-se
e 40 % são devolvidos a atmosfera por evapotranspiração.
Os engenheiros também impermeabilizam os
rios, concretando seus leitos e barrancas e assim isolando-os das terras e dos
aquíferos adjacentes, impedindo a infiltração. Com isso todos os contaminantes lavados
das ruas e calçadas pelas chuvas são concentrados no canal. O corpo receptor
final da rede paga o pato, recepcionando águas lotadas de lixo, contaminantes e
matéria orgânica provenientes das ruas e calçadas.
A rede de canais concretados e
impermeáveis gera custos exorbitantes para manutenção, que inclui reparos e remoção
de lixo e sedimentos, muitas vezes além da capacidade financeira das
Prefeituras. Para piorar, a maioria das galerias é baixa demais e cria
ambientes insalubres de trabalho, impedindo que os operários adentem e fiquem
de pé para realizar serviços de manutenção. Uma solução genial. Como resultado,
os custos para limpeza sobem as raias do absurdo para alegria das empreiteiras.
Em mais de 99% dos municípios brasileiros
as Prefeituras sequer possuem mapas atualizados da rede e relatórios
documentando as caraterísticas dos canais como formato, largura, cota e outras,
jamais estimaram o custo anual de limpeza e reparo e não operam com base em uma
programação técnica. A gestão é baseada na emergência e no improviso e naquela
conhecida prática “quem sabe é o fulano”.
A Constituição Brasileira determina que
incumbe ao Poder Público “preservar e restaurar os processos ecológicos
essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas” (art. 225, §
1º, inciso I). Sob a perspectiva legal, obras deste tipo colidem com a Constituição
Federal, pois causam grandes danos ambientais ao transformarem rios e córregos
em áreas degradadas, além de incrementar a poluição do corpo receptor, seja ele
uma baia, praia, lagoa, represa ou outro rio. É por este motivo que a Resolução
001/1986 do Conselho Nacional do Meio Ambiente exige Estudo de Impacto
Ambiental (EIA) como pré-requisito para aferir a viabilidade ambiental de obras
de drenagem urbana (artigo 2 inciso VII). Em síntese, projetos drenagem urbana demandam
EIA para serem licenciados.
Cabe ressaltar que tais obras aniquilam
qualquer possibilidade de restaurar rios urbanos. Mesmo que a água um dia seja limpa,
jamais haverá vida aquática nos valões escuros, por uma simples razão: peixes e
outros animais não comem concreto e plantas precisam luz para fazer fotossíntese.
Desde o final da década de 1980,
especialmente no Japão, América do Norte, Europa, Austrália, Nova Zelândia e
até na Índia, os engenheiros estão promovendo uma drástica mudança nas obras de
drenagem urbana, olhando a bacia como um tudo e projetando soluções que
aumentem a infiltração (praças, parques, estacionamentos e outras permeáveis) e
reduzem a poluição das águas de escoamento urbano (runoff).
Em nossa região temos duas organizações públicas
que praticam a destruição dos rios urbanos, a EMUSA em Niterói e a Fundação Rio
Águas no Rio. Por ironia, a capital tem a palavra “Rio” em seu nome. Mas de
janeiro a janeiro os rios são dizimados e envelopados em concreto. Como Niterói
quer dizer “água escondida”, a EMUSA interpreta ao pé-da-letra. Os rios são
destruídos e tapados, passando suas águas a correrem de forma escondida,
causando sérios dados a Baia de Guanabara e as lagoas de Piratininga e Itaipu.
Diz o adágio popular: errar é humano,
repetir o erro é burrice. Hora de abandonar a inércia e a preguiça e sair da
zona conforto em busca de soluções sustentáveis. Não há desculpas. É só querer.
A Secretaria Executiva da Prefeitura de
Niterói esta planejando a renaturalização do rio Jacaré, afluente da lagoa de
Piratininga, com apoio da Corporação Andina de Fomento, de especialistas do
exterior e do SubComitê de Bacia (CLIP), constituindo uma excelente
oportunidade para que engenheiros da EMUSA e da Fundação Rio Águas conheçam as novas
técnicas e abandonem suas obras obsoletas do século XIX, ingressando na
modernidade.
A Caixa Econômica Federal tem há vários anos
o Programa de Drenagem Urbana Sustentável, que inclusive assessora as
Prefeituras na elaboração de projetos. Abaixo
o link do referido programa:
Para conhecer mais:
Manual de Drenagem Urbana da Cidade de
Portland (EUA), de 2016, com amplo leque de soluções
Drenagem Urbana Sustentável, documento do
Departamento de Engenharia Hidráulica e Sanitária da Escola Politécnica da
Universidade de São Paulo: www.pha.poli.usp.br/LeArq.aspx?id_arq=304
Site da Agência de Proteção Ambiental dos
EUA dedicado ao Programa de drenagem urbana.
Manual of River Restoration Techniques - River
Restoration Centre's (RRC/Inglaterra)
Digitar no Google “sustainable stormwater
management” que centenas de soluções aparecem.